3.12.07

10.11.07

Alberto Pimenta


dum lado da jaula
os que vêem
do outro
os que são vistos

e vice-versa



O pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho-da-puta.
todos os grandes
filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o
pequeno filho-da-puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequeno filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o
pequeno filho-da-puta.
de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho-da-puta.



de repente no meio da rua
não se saber onde se está
de repente no meio da rua
não se saber quem se é
não encontrar o bilhete
de identidade nem a chave
de casa nem o dinheiro nem
conhecer os sapatos que
se trazem nem as calças e
a camisa eventualmente
o casaco nem compreender
a língua que falam todos
os que de roda se puseram
empurrando-se para ver
melhor até chegar a polí
cia e encarregar-se de tu
do o resto quer dizer: de
fazer o transporte e de
abrir e fechar a porta da
cela branca branca vazia
donde nunca mais se sairá


tinha na mão
a antologia
e primeiro não sabia
que show via
o que ouvia
ou via.
mas de repente
ouvi ou vi
que chovia
e fechei
a antologia.
mas só trinta anos
mais tarde
fiz esta poesia.

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9.10.07




aprenderás que hay muertos diferentes





josefina pla




7.10.07

Arthur Miller




ela era uma poeta numa encruzilhada tentando
recitar para uma multidão que arrancava sua roupa.



arthur miller





29.9.07

A importância de ser pepino




A importância de ser pepino


Como muita gente sabe, o sanduíche de pepino é um acompanhamento tradicional do chá inglês, ou dos piqueniques de verão daquelas bandas. Preparado com finas camadas de pepino colocadas em duas fatias de pão de fôrma branco, sem casca, besuntadas com manteiga. No entanto, os sanduíches de pepino ganharam notoriedade literária na peça de Oscar Wilde, A importância de ser Prudente, onde eram especialmente preparados para Lady Bracknell, que se deu mal porque... ora, leiam a peça. Hoje há muitas versões do sanduíche de pepino. Até acrescido de bacon e cream cheese, o que sem dúvida revoltaria o paladar delicado de Lady Bracknell. Dito isto, publico aqui a receita do Sanduíche de Pepino à Oscar Wilde, grande sucesso nos salões literários da Paris dos anos 1920:

Para preparar 10 sanduíches, descasque e corte em finíssimas camadas um pepino grande. Coloque as fatias do pepino em uma peneira e acrescente uma pitada de sal. Deixe descansando por 1 hora. Depois seque bem as fatias com um pano limpo ou toalha de papel. Coloque as fatias de pepino em uma tigela com 1 colher de sopa de azeite de oliva, 1 colher de sopa de suco de limão, 1/2 colher de chá de açúcar e uma pitada de pimenta branca. Misture tudo suavemente e deixe em repouso enquanto prepara o pão. Use um pão de fôrma branco da melhor qualidade -- de preferência caseiro e do dia seguinte -- e corte-o em finas camadas. Para preparar 10 sanduíches, obviamente você precisará de 20 fatias. Em uma tigela, coloque 1 1/2 de manteiga sem sal na temperatura ambiente, 2 colheres de sopa de creme (natas), 1/2 colher de sopa de mostarda. Misture tudo. Em seguida espalhe esta mistura generosamente em cada fatia de pão, acrescente as fatias de pepino e, pronto, feche o sanduíche. Corte-o na diagonal, formando dois triângulos. Coloque os triângulos no prato para servir enfeitado com raminhos de agrião ou hortelã. Os sanduíches devem ser preparados logo antes de servir, para evitar que fiquem úmidos demais e percam o frescor. Aprecie com moderação.


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24.9.07

A carta de Helsinque




Ele colocou os livros na mesa e abriu a carta de Helsinque. Agora vêm as notícias. O que penso que lerá nessa carta? Anna não virá nunca mais. A cena se repetia todas as manhãs: quando o telefone tocou ele ainda não havia chegado. Ouvira falar dos livros e comprou-os. Tudo muito por hábito, pensava idéias que todo mundo fala sem notar a diferença das suas. Idéias comuns sempre chegam mais cedo do que se espera. Começou a ler sem interromper a continuidade do silêncio. O papel fino tremendo nas mãos. O papel dos livros é duro. Não verga. A carta era breve, 265 palavras e a assinatura final. Vamos terminar por aqui. Ele já tinha notado a diferença. Anna não virá nunca mais. Poesia toda numa só. Ano passado ela disse que voltava já. Ele ficou esperando e comprou livros. Das 265 palavras, 42 foram usadas uma só vez. Distribuídas em um único parágrafo de frases com sujeito obrigatório e algumas agramaticalidades. O sujeito oculto estava em algum lugar. Vamos terminar por aqui veio seguido de uma pausa: cinco linhas em branco. Ficção da indiferença. Ele pensou em preencher o espaço com desaforos e devolvê-lo ao remetente. O acaso é um processo, eu pensei em dizer, sem coragem de chamá-lo pelo nome: eram letras borradas no destinatário do envelope. Sei que ele gosta de ler livros, já o irmão é alto. Todos sabem. Anna conheceu o irmão em Helsinque. Ninguém sabe. Ele colocou a carta dentro do livro. O papel da carta é mole, o papel do livro é duro. Mal os sentia agora.


maira parula

12.9.07

flashes da Blooks -- Tribos & Letras na Rede





A poeta e blogueira Ane Aguirre foi conferir a exposição, me achou lá (o texto embaixo) e gentilmente Sergio Fonseca clicou. As fotos saíram meio escuras porque o ambiente era cavernoso. Mais detalhes sobre a mostra no Rio veja num post aí embaixo.








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9.9.07

Josefina Plá




Quisera eu algum dia ser a faca
que me corta e saber o que ela sente


Josefina Plá (1902-1999)




Nascida na Espanha, quase desconhecida no Brasil, Josefina Plá tornou-se uma das maiores expressões da cultura do Paraguai, onde passou a maior parte de sua vida. Para este blog, traduzi 3 de seus poemas.



Livre


Livre para nascer sem escolher o dia
livre para beijar sem saber por que esta boca e não outra
livre para engendrar e conceber o que há de te trair
livre para pedir o que depois será inútil
livre para buscar o que amanhã já não terá significado
livre para morrer sem escolher o dia
livre para apodrecer sem escolher o lugar
livre para voltar ao pó sem memória
livre para seguir o rumo das raízes pequenas
livre para olhar o sol que não te olha
Livre para nascer sem escolher o dia



As portas


...Um fechar de portas,
à direita e esquerda;
um fechar de portas silenciosas,
sempre a destempo,
sempre um pouco antes
ou um momento demasiado tarde;
até restar só uma aberta,
a única pontual,
a única obscura,
a única sem paisagem e sem olhar



A viagem


Não sei onde tomei este trem
O vagão está fechado
e a única paisagem
é a sombra que corre com o trem
Me acompanham um velho que já se esqueceu de tudo
e um menino que não sabe aonde vai nem com quem
Sei apenas que este trem tem
uma só estação uma só plataforma
e que quando chegar seja onde for
não sei onde estarei




6.9.07

Programação de setembro



Blooks -- Tribos & Letras na Rede

Prosa, poesia, quadrinhos, letras de música e games. A efervescência da criação literária na web e a interferência dos bytes na escrita e na leitura do que é hoje produzido na internet vão estar na exposição Blooks - Tribos & Letras na Rede, da editora Aeroplano. A mostra, idealizada pela professora e crítica literária Heloisa Buarque de Hollanda e com a participação de Omar Salomão e Bruna Beber, ressalta o vasto universo da palavra, que prolifera na rede em blogs interativos, podcasts e sites, celeiros de expressão e criação literária do novo milênio.

Além da Blooks, onde esta que vos fala vai ter um texto lá exibido, você poderá ver no mesmo espaço a exposição Waly Salomão: Babilaques, Alguns Cristais Clivados que vai até 14 de outubro. A TechNô, uma mostra de arte, poesia e tecnologia. Denise Stoklos encenando teatro para crianças e outras atrações. O convite está aí embaixo. Tudo no Rio de Janeiro, Oi Futuro, rua Dois de Dezembro 63, Flamengo. Aproveite. Nas exposições a entrada é franca.





28.8.07

Gafes à mesa



Sobre gafes à mesa

Os acepipes muitas vezes despertam a maledicência. Este hábito constitui a força dos pobres de espírito, os cultos não o adotam. Santa Teresa sempre foi tida como a advogada dos ausentes e, diante dos que invocam como desculpa o fato de que "os outros não nos poupam", seria oportuno recordar que a bondade e a reserva são adornos para todas as idades.

A gafe é uma vocação, disse Laudet. Grandes personalidades, como Napoleão, cometeram gafes a torto e a direito. Como um pássaro a esvoaçar sobre todas as reuniões, a gafe sobrepaira em todas as mesas, mas é preciso não permitir que pouse, pois nos causa um mal-estar que nos fica colado à alma. E o pior ainda é que depois disso não sabemos conversar.

Há pessoas que tomam a palavra de princípio a fim e discorrem o tempo todo, com os direitos de um conferencista. Ora, a menos que a nossa competência sobre qualquer assunto tenha sido solicitada, não se usurpa indefinidamente um privilégio que nos foi momentaneamente concedido. Outras pessoas remontam, em suas narrativas, a Matusalém, e, embora contem fatos absolutamente banais, não dispensam um cortejo histórico. Outras, ainda, têm a mania irritante das comparações hiperbólicas ou indiscretas.

Também desgracioso seria falar mal de si próprio, dos seus, ou levar à mesa um compêndio sobre seus males íntimos, mesmo porque jamais devemos dizer de nós mesmos, nem mal, nem bem. Santo Agostinho caluniava-se por virtude; Rousseau, por orgulho; e a celebridade de Byron foi o ter sabido queixar-se. São exceções. Acusar publicamente um rim volante ou um fígado em cólicas para não aceitar um prato que nos foi oferecido, ou cujos condimentos não nos apetecem, seria perfeitamente descabido, incivilizado mesmo. E depois, se temos o direito de recusar um prato em meio a um banquete, para que impor aos convivas "bons garfos" a mágoa dessas proscrições terapêuticas e seus regimes aguados?

Falar frequentemente de si ou das próprias atividades é ser pretensioso, pouco polido para com os demais, e, num jantar, é quase indigesto. Discutir sobre a origem da vida só é aproveitável aos grandes espíritos. Ainda assim, o resultado dessas controvérsias é raramente feliz. Os antigos baniam das suas mesas a religião e a política, porque as criaturas de caráter impulsivo e apaixonado, nas suas expressões partidárias e ofensivas, se esquecem muitas vezes de que a verdadeira civilização transmuda o homem, inspirando-lhe o respeito recíproco que desconhece os limites dos partidos.

Enfim, à mesa, mesmo quando pesem as iguarias no estômago, o espírito deve conservar-se leve. Limitemo-nos a banalidades sociais: fatos do dia, fragmentos de história e literatura, anedotas não obrigadas a biografias, cuja oportunidade se ajuste a uma expressão feliz.

Saber conversar é uma arte, e uma prosa destra, como dizia Nietzsche, tem ritmo de dança. E o homem amável, disse Mme. de Genlis, é aquele que escuta com interesse as coisas que sabe da boca daquele que as ignora. Ainda mais, é aquele que conhece todo o manejo dessa arma poderosa -- o Silêncio. É o silêncio que encoraja, que cede, que aprova, que desvia uma frase infeliz, acode a uma fraqueza, condena um pensamento suspeito e mata uma esperança.




Carmen D'Avila, em seu manual de 390 págs. intitulado Boas Maneiras, cuja décima edição publicada em 1956 pela ed. Civilização Brasileira saiu com uma tiragem de "89 milheiros".


21.8.07

Jorge Gomes Miranda





Lâmina de Barbear


Abre um armário espelhado,
pega em mim.
Pousa-me no lado direito do lavatório.
Inclina-se.
No instante em que a água quente
corre da torneira,
nas mãos em concha mergulha
o rosto; emerge para o aproximar
um pouco mais do espelho
e repara nas linhas
que se formaram nos últimos anos
à volta dos olhos.
O creme percorre a pele áspera,
suaviza-a,
quase uma carícia.
Calmamente começa a fazer a barba:
movimentos certos,
conhecidos.


Olha para o seu lado esquerdo.
Removida do rosto uma sombra,
outra, ainda sem nome,
investe já contra a pele.




Jorge Gomes Miranda, "Lâmina de Barbear", 2007.

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14.8.07

Rainer Maria Rilke




Cristo, no gesto da Crucificação, seus braços estendidos parecendo uma placa de sinalização na encruzilhada de toda a dor, morre sob o peso do seu destino que, como uma pedra (a Cruz pesada e petrificada), eleva-se sobre ele. E ela, que uma vez veio para ungir seus pés incansáveis, aproxima-se, agora que o sacrifício está completo, para envolver aquele corpo abandonado e inanimado com o carinho tardio e sem sentido do seu próprio corpo. Em um paroxismo de desespero, ela se joga aos pés dele. Com o braço esquerdo, apóia aquela cabeça maltratada, cuja expressão já não consegue suportar. E o rosto dele deixa-se levar por seu braço trêmulo, como um objeto flutuante, enquanto ela, curvada para a direita, como uma chama atormentada pelo vento, tenta enterrar e esconder o sofrimento inefável daquele corpo tão amado no seu próprio amor destruído. Ela o envolve com um movimento desconsolado e suplicante e, com um gesto de desamparo, solta os cabelos para mergulhar neles o coração atormentado de Cristo.


Rainer Maria Rilke, em monografia sobre a escultura Cristo e Madalena, de Rodin, 1902.


8.8.07




Vi realmente um anjo não muito longe de mim, vinha na direção de minha mão esquerda... ele não era grande, era pequeno, muito bonito, o rosto magnífico... Vi, sim, na sua mão um longo dardo de ouro que, na extremidade da ponta de ferro, parecia haver um foguinho com que ele me atravessava o coração às vezes, e penetrava minhas entranhas, tanto que achei que ele as arrancou de mim quando o retirou, e ele me deixou totalmente inflamada de um amor imenso por Deus, a dor era tão grande que me fazia chorar de aflição, mas a delícia era tanta, a delícia que essa dor causava, que eu não queria que a tirassem de mim jamais...


Santa Teresa de Ávila, em Livro da Vida, publicado em 1588.
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30.7.07

27.7.07

Sobre o ofício de escrever



os dias de anteontem


Dia 25 foi o dia do escritor. Eis o que alguns deles
já disseram sobre o ofício:


Eu gostaria de ter dinheiro e gostaria de ser uma
boa escritora. Estas duas coisas podem vir juntas,
e espero que venham, mas se isso for demais,
queridinho, eu preferiria o dinheiro.
- Dorothy Parker


Não é má idéia escrever o que se pensa. Assim
a gente poupa os outros de aborrecê-los
com nossas idéias.
- Isabel Colegate


Na literatura como no amor, é um espanto
ver o que os outros escolhem.
- André Maurois
Se eu tivesse de dar um conselho aos jovens
escritores, diria para eles não darem ouvidos
aos escritores que falam do que é escrever
ou de si mesmos.
- Lillian Hellman

Escrever é um jeito de falar sem ser interrompido.
- Jules Renard


Não me tornei escritora porque estudei. Tornei-me
escritora porque minha mãe me levava na biblioteca
e eu sempre quis ver meu nome no catálogo deles.
- Sandra Cisneros
Escrever é transformar os piores momentos
em dinheiro.
- J.P. Donleavy

Eu levei 15 anos para descobrir que não tinha talento
para escrever. Mas daí eu não podia desistir mais
porque já era famoso.
- Robert Benchley
Escrever é livrar-se das coisas. Você se livra de
muitas coisas quando as coloca no papel.
- Hemingway
Escrever é um ofício em que você tem que ficar
provando o seu talento a quem não tem
talento nenhum.
- Jules Renard
Adoro ser um escritor. O que não suporto é ter
trabalho de escrever.
- Peter DeVries
Na dúvida, corte um adjetivo.
- Mark Twain

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18.7.07




creio esta noite na terrível imortalidade:
nenhum homem morreu no tempo,
nem mulher, nenhum morto,
porque esta inevitável realidade de ferro e de barro
tem de atravessar a indiferença de quantos estejam
adormecidos ou mortos
- ainda que se ocultem na corrupção e nos séculos -
e condená-los à vigília espantosa.

Toscas nuvens cor de borra de vinho infamarão o céu;
há de amanhecer em minhas pálpebras apertadas.





Jorge Luis Borges, em fragmento de "Insônia". Imagem de Diego Abrahão.

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10.7.07





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7.7.07

Mia Couto



Manhã


Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar

Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos

Educadamente mortos



Mia Couto

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19.6.07

Mário Cesariny



Afinal o que importa não é a literatura

nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio

nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante

-- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício

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Versos da "Pastelaria" de Mário Cesariny.

15.6.07

Bolero


Qué vanidad imaginar
que puedo darte todo, el amor y la dicha,
itinerarios, música, juguetes.
Es cierto que es así:
todo lo mío te lo doy, es cierto,
pero todo lo mío no te basta
como a mí no me basta que me des
todo lo tuyo.

Por eso no seremos nunca
la pareja perfecta, la tarjeta postal,
si no somos capaces de aceptar
que sólo en la aritmética
el dos nace del uno más el uno.

Por ahí un papelito
que solamente dice:

Siempre fuiste mi espejo,
quiero decir que para verme tenía que mirarte.

Y este fragmento:

La lenta máquina del desamor
los engranajes del reflujo
los cuerpos que abandonan las almohadas
las sábanas los besos

y de pie ante el espejo interrogándose
cada uno a sí mismo
ya no mirándose entre ellos
ya no desnudos para el otro
ya no te amo,
mi amor.


Julio Cortázar

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5.6.07

e. e. cummings



maggie and milly and molly and may
went down to the beach (to play one day)

and maggie discovered a shell that sang
so sweetly she couldn't remember her troubles, and


milly befriended a stranded star
whose rays five languid fingers were;

and molly was chased by a horrible thing
which raced sideways while blowing bubbles: and

may came home with a smooth round stone
as small as a world and as large as alone.

For whatever we lose (like a you or a me)
it's always ourselves we find in the sea





25.5.07

Maira Parula - Eu não poderia lavar alface nessa pia




Eu não poderia lavar alface nessa pia. Moro num 3x2, pia e privada incluídas. E uma janela-basculante sobre a Guanabara. Quando se mora há muito tempo num 3x2, não dá para lavar alface na única pia do lugar. E eu moro há mais de vinte anos ao lado dessa pia de frente pro mar. Ela é o meu mundo. Toda a água de que preciso nesta vida eu sei que sairá por ali. A pia é o meu atlântico, minha lagoa, minha piscina. Aqui lavo o rosto, as mãos, os dentes, o cabelo, o corpo por inteiro. Por isso botei minha cama ao lado da pia. A pia é o meu relógio. Quando quero saber o tempo que passa, basta abrir um pouco a torneira e contar os pingos. Aprendi que o justo controle da pressão da água me daria também tudo de que eu precisava para ser feliz. Pingos diferentes são música. Pulsos lentos, pulsos rápidos, meus tímpanos vibrando na frequência dos pingos, formando compassos. Eu divido o fluxo da água para obter o som que bem quero, mas às vezes a torneira me surpreende com uma batida diferente. São momentos mágicos, posso dizer assim. Como as horas em que dou toda pressão e uma cachoeira entra no meu quarto. Tudo é questão de fechar o ralo certo. Na medida certa. Para pessoas comuns um ralo é um ralo. Bocal de canalização de esgotos, como nos dicionários. Pessoas comuns e dicionários têm ideias menos imaginativas a respeito dos ralos. Para mim são a porta de saída da minha vida. Como a torneira é a porta de entrada. O que eu preciso é controlar ralo e torneira. Mantê-los em sincronia. Onde um cede o outro resiste. Os dois não podem ceder e resistir ao mesmo tempo. E assim vou aprendendo com a minha pia o que é o mundo das possibilidades. A pia é o único professor que eu tenho à mão. E eu nunca sei qual será a próxima aula.



10.5.07

Ana Paula Tavares

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe
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Deixa a mão pousada na duna
Enquanto dura a tempestade de areia
A sede colherá o mel do corpo
Renasceremos tranquilos
De cada morte nos corpos
Eu em ti
Tu em mim
O deserto à volta





2.5.07

bed & book








Residue é o título deste livro em forma de caminha que ganhou o Florida Book Prize de 2003. O projeto é da artista plástica Rosemarie Chiarlone e da poeta Susan Weiner, que publicou no livro um poema bordado nos lençóis de algodão. Para ler o poema é preciso desfazer a cama. São 12 folhas soltas e com direito a travesseirinhos e tudo. Só houve 3 edições (1 exemplar de cada), em inglês, francês e espanhol. Viraram peças de museu. O que dizer além de fofo?
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21.4.07





Bilhetinho de Gertrude Stein para
Alice B. Toklas. Arquivo pessoal, s/d.


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9.4.07

Paul Auster





Um sujeito entra num bar em Chicago às cinco da tarde e pede três uísques. Não um depois do outro, e sim três de uma só vez. O barman fica meio intrigado com o pedido inusitado, mas não abre a boca e serve o que o homem pediu -- três uísques alinhados no balcão, um do lado do outro. O sujeito toma todos eles, um por um, paga a conta e vai embora. No dia seguinte, lá está ele de novo, às cinco da tarde, e pede a mesma coisa. Três uísques de uma vez. Faz isso todo dia durante duas semanas. Por fim, a curiosidade vence o barman: não quero me meter, diz ele, mas o senhor vem aqui todo dia, há duas semanas, e sempre pede três uísques ao mesmo tempo, eu só queria saber por quê. Quase todo mundo pede um de cada vez. Ah, diz o sujeito, a resposta é muito simples. Eu tenho dois irmãos. Um mora em Nova York, o outro em San Francisco, e nós três somos muito chegados. Como forma de honrar nossa amizade, sempre vamos a um bar às cinco da tarde, pedimos três uísques e em silêncio brindamos à nossa saúde, fingindo que estamos todos juntos no mesmo lugar. O barman meneia a cabeça, entendendo finalmente o motivo do estranho ritual, e esquece o assunto. O sujeito continua a aparecer no bar por mais quatro meses. Sempre às cinco da tarde bebe os três uísques. Até que um dia aparece mas dessa vez pede só dois uísques. O barman fica preocupado e, tomando coragem, resolve dizer: não quero me meter, mas todo dia, nestes últimos quatro meses e meio, o senhor veio aqui e pediu três uísques. Hoje pediu dois. Sei que não é da minha conta, mas espero que não tenha acontecido nada com sua família. Não aconteceu nada, não, diz o sujeito, muito animado e alegre como sempre. Então o que foi?, pergunta o barman. A resposta é muito simples, diz o homem. É que eu parei de beber.


-- do livro Viagens no scriptorium, de Paul Auster. 

16.3.07





Ninguém te diz que
fiques
mas eu digo

possíveis os teus olhos
são de verde

que seja a cor da água
do que sentes
infância e madressilva
tu comigo

Selado sobre a casa-desabrigo
ou cintilante racha na parede
aparte do que sabes
e que eu minto

te exponho só de rosas
não somente
o corpo que se canta e não pretende
por demais onde a terra não se estende
e de ti memória
em fio de zinco

Ninguém te diz que
partas
mas eu digo

Intransponíveis são
as pedras do que sinto

Atentamente estou
mas não contigo




-- "Jardim de Março", em Novas cartas portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, 1974.

--

6.2.07

José Carlos Oliveira

Evocação dos bares

Ainda existe, Lúcio Cardoso, aquele barzinho da Lapa, debaixo dos Arcos, onde eu, você, o poeta Gullar e o Binho passávamos longas tardes comendo siri e bebendo vinho branco. Você era o único escritor realizado ali presente. Nós outros estávamos iniciando a carreira. O Gullar era desesperado, o Binho, surrealista, eu tinha um medo danado da vida. Construíamos grandes montanhas com as cascas de siri, onde as moscas fervilhavam. E não havia nada a fazer, porque você sempre foi disponível e nós, naquela época, não gostávamos de trabalhar. O bondinho de Santa Teresa trepidava sobre nossas cabeças e, em torno de nós, o trânsito espesso da Lapa. Às vezes aparecia um bêbado e, vendo que éramos pessoas ilustres, porque só falávamos de coisas incompreensíveis, sentava-se conosco e bebia do nosso vinho e comia dos nossos siris. A vida naquele tempo era amável, ligeiramente amarga e sem dificuldade porque cada qual podia muito bem morrer no dia seguinte -- não tragicamente, mas -- como dizia Rimbaud -- par delicatesse. Agora mudamos de bar e nos compenetramos no futuro, esse tempo também, Lúcio, não volta mais.
[...]
Há pessoas que se ligam aos lugares onde moram de tal maneira que não se pode pensar em um sem pensar em outro. Não se pode falar de Rachel de Queiroz sem aludir, indiretamente, à Ilha do Governador; e a Lapa e Manuel Bandeira são dois nomes muito próximos um do outro. De Lúcio Cardoso não se pode falar sem pensar, primeiro, em Minas Gerais, e em seguida em alguns bares. Minas é o paraíso infernal que ele tem no coração. É o paraíso porque foi perdido; o inferno, porque nesse lugar mitológico sopra constantemente um vento maligno que, às vezes, apaga o lume dos castiçais. Minas e infância, para Lúcio Cardoso, são a mesma coisa; o Rio se confunde com sua maturidade. [...] onde anda o Lúcio? Já sei: quando não está escrevendo, está descobrindo e revelando algum bar. A quantos bares nos afeiçoamos, nesta cidade onde até os botequins, para quem é curioso, possuem sua especialidade. Ou é batida de limão, ou são pequenas mesas num compartimento espaçoso e vazio, ou a lingüiça frita que vai tão bem com uma cerveja, ou ainda a vista que se descortina de sua varanda. Cada bar deve ser descoberto, como um porão, como o fundo do mar, como todas as coisas.


José Carlos Oliveira, 1960. Crônica republicada em O homem na varanda do Antonio's, 2004.


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25.1.07

e si sêsse?



se um dia nós se gostasse
se um dia nós se queresse
se nós dois se impariasse
se juntinho nós dois vivesse
se juntinho nós dois morasse
se juntinho nós dois drumisse
se juntinho nós dois morresse!
se pro céu nós assubisse?
mas porém se acontecesse
qui são Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse
te dizê quarqué toulice?
e se eu me arriminasse
e tu cum insistisse
pra qui eu me arresorvesse
e a minha faca puxasse
e o buxo do céu furasse?...
tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôda fugisse!!!


-- Zé da Luz acompanhado ao piano por James Joyce.



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