30.8.17

6 poemas de Margarida Vale de Gato










Se sinto isto aqui chiar cá dentro 


De qualquer forma sei como encontrar
quem alivie. Nem o problema está
em que não sejas tu. Antes será
que venham mas não tenha para lhes dar,


atribuir-lhes uso, não lugar:
esse amplo espaço que te abri, já
feito o trespasse, o isolei: aliás
de ti adopto o jeito de vedar,

e embora admita que também estalas,
há que emplastrar de novo a cal, o gesso,
e sem falta cobrir as decepções,


que cesse o eco, quando ainda me falas,
esticada como antes, tua, tesa. 
Tudo estanque, agora, é raro o ar


um silvo só arranha entre os pulmões. 




Coping


Ficar quieta é técnica que já
aplico com rigor, e no preciso
sítio em que pulsa paraliso
tudo, quem está morto livre está.


Creio que começou quando cedeu 
o avô. Alguém disse: afinal
o coração não aguentou. Eu
pensei: mais vale declinar o abalo. 


Mas também não cheguei nessa altura
até ao fim. Escangalhei-me na novena
aos degredados filhos de Eva. 
Iniciei-me então nos barbitúricos

e hoje passo bem melhor. Às vezes
é um jogo, em que recorro ao coito
antes de apanhada, e se esgoto
essa via, dedico-me à mimese,


diluo-me com os objectos, tudo
me toca mas nada dá por mim, tão
imóvel que me ignora a dor, não 
há como acordar um corpo mudo. 


Por exemplo agora que não veio
o homem, podia ter-me ferido
ou saído a buscar outro, e perdido;
mas pratico com vantagem a apneia

e a domesticidade. É pena
que me esqueça tanta coisa; foi 
sorte saber da lamela - eia, pois,
advogada nossa - dormir serena. 




Ressabiadas


Talvez lá no fundo acredite
que os seres humanos são todos sensivelmente 
os mesmos em toda a parte, mas então 
necessariamente as mulheres são mais. 
Costumes que frequentamos: 
o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas
do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão, 
o alguidar, guardamos os restos, torcemos
os trapos, os nossos recados, os nossos sacos,
os nossos ovos. 


Certamente que eles, em grande maioria, 
escanhoam os queixos e gostam
de arejar, mas não médicos, polícias,
engraxadores, economistas
e os vários naipes da banda filarmónica
nós somos todas domésticas, mesmo

assim não nos entendemos, e
nem serve escrever isto
que o maniqueísmo em traços largos
resvala na aldrabice, e a poesia
vem dos anjos já se sabe
carecidos de sexo. 


E aliás que me rala a mim,
levo a minha vida e tenho o amor
de que não desconfio
e se consolo o cio e a fome
decerto falo de cor,
nem é por isso que me doem os calos
mas por causa dos bicos
dos vossos saltos
no desnível dos soalhos, refinadas
galdérias que se tomam a sério,
pestanas certeiras e beiços
que brilham, línguas que estalam 
e mamas que chispam

corada invoco a imagem mal tirada
da fêmea recortada ao macho que a conforma;
sei que desminto qualquer laço comunal
e seja como for ninguém pediu 
o meu palpite, pelo que não me habilito 
e me desquito, acinte,
mudo, era eu


quem estava mal. 




Mulher ao mar


MAYDAY lanço, porque a guerra dura
e está vazio o vaso em que parti
e cede ao fundo onde a vaga fura,
suga a fissura, uma falta – não
um tarro de cortiça que vogasse;
especifico: é terracota e fractura,
e eu sou esparsa, e a liquidez maciça.
Tarde, sei, será, se vier socorro:
se transluz pouco ao escuro este sinal,
e a água não prevê qualquer escritura
se jazo aqui: rasura apenas, branda
a costura, fará a onda em ponto
lento um manto sobre o afogamento.



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No rascunho que Fernando Pessoa usou
para a tradução do Corvo de Edgar Poe
há no fim versos talvez seus que rasurou.

«Dic. de Rimas», em letra legível vem
por cima; depois, porém, o que não quis
que viessem a ler, nem ele a ter de escrever,
afigura-se tão honesto quanto sofrível.
Devo admitir que não pude coibir-me
(julgo eu que nenhum outro, ao descobrir
o bilhete ignorado de um morto)
a tentar ver se ele traduzia, se
aquilo era poesia ou um apelo
e a mim cabia, por mais
que inexacto, transcrevê-lo.

Se julguei entender a certo passo
o verbo «treslêem», era chato
que ao primeiro sinal faltasse o traço;
olhando de novo, talvez achasse
«conteem» (atestando no passado
mais desafogo ortográfico)
o que era menos ousado
embora não desdissesse
aquilo que me comove
na p. 229
do Livro do Desassossego,                  
«Ler é sonhar pela mão de outrem.
Ler mal e por alto é libertarmo-nos 
da mão que nos conduz.»
Isto sobretudo quando, como dizia
o galês que o Ivan Junqueira traduz,
«Grande é a mão que mantém
o seu domínio sobre um homem
por ele ter escrito um nome.»
(Neste ponto, nota de rodapé onde se lê:
Jerónimo Pizarro, em comunicação pessoal,
diz-me que o trecho não é do livro afinal.)

Devolvendo-me, por linhas tortas,
à reflexão do que fazer
com o papel em que um homem,
nem de propósito por muitos
considerado o maior génio
da língua portuguesa do século
vigésimo, depositou quem sabe
o seu mais pungente recado, o qual
riscou, mas não deixou por isso de guardar
numa resma arrumada que o culto nacional
não só numerou como hoje disponibiliza
digitalmente a quem quiser consultar.

E eu –– a tergiversar –– isto não é poema
nem condiz com sentida homenagem:
Fernando, tu dizias, da brevidade da vida
e da dor e desgraça que «ha n’ella» (anela),
e aquilo que mais doía era a falta de coragem
de confiar os desmandos do teu ser,
«oculto o meu interior aos olhares humanos»
(embora aqui talvez haja desfocagem
e possa ser «critério» o que esteja
no lugar de «interior» – onde, mais se justifica,
no início dessa estrofe, «Sinto horror»);
e ainda declinavas, pela margem
«Pensamentos.. gestos... palavras... almas»,
 
e eu que devia vir aqui dar corpo
ao inarticulado da poesia falar-te
do que perdeste, com esse teu feitio,
e a interna rima traindo-te a descarga
de eterno contentor que não explode ––

nem sei se a letargia tanto me sacode,
«além de que o não posso a alguém vazio».